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Dirceu Martins Pio

Por: hallak

Verificar nos locais se existe acessibilidade para o cadeirante e passar a exigir dos donos dos estabelecimentos que adaptem corretamente equipamentos e ambientes. Esta é a luta do jornalista Dirceu Martins Pio, de 70 anos, que em 2013 sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e teve o lado direito do seu corpo paralisado. O AVC foi um divisor de águas na vida do jornalista. Ele sobreviveu ao acidente, mas tornou-se cadeirante, e começou então, um longo processo de fisioterapia e recuperação. Hábitos da vida passada, como dirigir, foram abandonados; o jornalista deixou de fumar e beber e passou a tomar cuidado com a alimentação.

“A perda dos movimentos do meu braço direito foi a consequência mais visível do meu AVC. O braço estava aqui, mas eu não o sentia. Fiquei 4 anos sem sentir o meu braço direito. Acho que este é o aspecto mais estranho de sofrer um AVC e se tornar uma pessoa com deficiência: você perde a noção clara de como você mesmo era antes”, conta Pio. Após anos de fisioterapia, o jornalista está recuperando os movimentos do braço direito e também já consegue ficar em pé sozinho, além de caminhar com a ajuda de um andador.

No final de 2017, Pio fez uma viagem para o Sul do Brasil com a esposa Susana, de carro. Eles vivem em uma aprazível casa na linda cidade de Vinhedo/SP, perto de Jundiaí, no interior paulista. O jornalista, que morou 20 anos em Curitiba/PR e viajou bastante por Santa Catarina, queria visitar novamente a praia de Imbituba/SC, onde teve uma casa de veraneio vendida após o AVC. Ele não quis viajar de avião porque o aeroporto mais próximo de Imbituba, o da capital Florianópolis/SC, fica a 90 Km do balneário e o deslocamento por carro dependeria do horário do voo, o que seria complicado por causa da época do ano – a BR-101 fica congestionada em determinados horários.

Ao percorrer os 820 Km entre Vinhedo/SP e Imbituba/SC, Pio pôde sentir na carne como falta acessibilidade em quase todas as instalações nas cidades e rodovias brasileiras: postos de combustíveis, restaurantes, banheiros e até mesmo hotéis não têm ambientes adaptados para pessoas com deficiência e quando possuem, por vezes, a adaptação foi feita fora das normas técnicas, o que representa na prática mais esforço e sofrimento para o cliente.

“Existe um círculo vicioso na sociedade brasileira. A impressão geral é que não existem pessoas com algum tipo de necessidade especial ou deficiência no nosso país. Por quê ? Porque muitas vezes as pessoas com deficiência, já sabendo das dificuldades que encontrarão para se locomover, ficam em casa. Vou te dar um exemplo: Campinas/SP é uma cidade com 1 milhão de habitantes, dos quais 250 mil são pessoas com deficiência. Aos poucos, as empresas estão descobrindo que existe mercado para o público PcD. Mas aí o problema é o atendimento. Você entra em um posto de combustíveis e quase todos têm banheiro com acessibilidade, mas muitos não têm equipamentos como as barras instaladas nas paredes ou nos toaletes onde ficam os sanitários”, explica Pio.

Em uma viagem entre o interior paulista e o litoral catarinense, que nos cálculos do jornalista significou mais de mil quilômetros rodados de carro, foram encontrados apenas dois postos de combustíveis com banheiros corretamente adaptados para o público PcD, em Barra Velha/SC. “Os dois postos são da Rede Sinuelo. Esses caras do Sinuelo sabem o que é acessibilidade”, conta Pio. O jornalista lembra que, na ida e na volta, ele e a esposa pararam em Curitiba/PR para descansar e dormir. “O primeiro hotel onde ficamos na ida, de uma grande rede francesa em São José dos Pinhais/PR, é um horror. Escolhi um quarto supostamente adaptado para cadeirante para ficar mais confortável. Eles não sabem o que é acessibilidade, todos os equipamentos, como barras laterais, estavam instalados de maneira errada”, diz. O estresse fez com que o jornalista passasse a noite na própria cadeira de rodas – o hotel não tinha uma. Na volta, eles optaram por outro hotel, dentro de Curitiba, onde o espaço é amplo, mas não existiam equipamentos. “Não tinha barras nas paredes. Você vai ao banheiro e encontra mais dificuldades: tinha o trilho do box que impedia a passagem da cadeira de rodas e pode derrubar uma pessoa que esteja recomeçando a andar”, conta.

O jornalista ressalta outro desconhecimento dos donos dos estabelecimentos, cuja solução seria simples: os banheiros adaptados. “A maioria tem a barra do lado direito. O Posto Sinuelo resolveu isto de uma maneira inteligente: colocou uma barra horizontal na frente do vaso sanitário. Outra questão é que alguns estabelecimentos colocam o banheiro para a PcD dentro do banheiro masculino ou do feminino. Não pode. Precisa ser separado do masculino e do feminino, muitas vezes o acompanhante que ajudará o cadeirante a ir ao banheiro é do outro sexo”, lembra.

Pio diz que em Imbituba/SC as férias foram boas – ele recomeçou aos poucos a ficar em pé e conseguiu caminhar muito devagar – mas lamenta que não exista nenhum acesso para cadeirantes às praias e lagoas do balneário. Por isto, não conseguiu tomar banho de mar ou de lagoa em nenhum dia, o que não deixou de ser uma frustração para alguém que não ia a uma praia há cinco anos.

 

O AVC e o blog

Após sofrer o AVC e começar a recuperação em 2013, Pio teve uma ideia: contar sua experiência do AVC e a batalha diária da fisioterapia em um blog, que passou a ter pelo menos um texto semanal do jornalista, no qual ele também relembra histórias de reportagens escritas ao longo de mais de 40 anos de carreira – ele trabalhou nos jornais: O Estado de São Paulo e Gazeta Mercantil, e também na Agência Estado.

“Seis meses após o AVC, tive uma consulta com uma médica do Hospital Albert Einstein na capital paulista. Ela me indicou para a fisioterapia o Lucy Montoro, que é uma rede de hospitais públicos no Estado de São Paulo, do governo, que funciona muito bem. Foi esta médica quem me explicou que a fisioterapia na rede Lucy Montoro estava até mais avançada na época que nos hospitais particulares e que meu AVC era raro. Porque normalmente os AVCs paralisam o lado esquerdo das pessoas atingidas, o meu paralisou o lado direito”, explica.

Na primeira internação no Hospital Lucy Montoro, de 90 dias, Pio conversou com uma psicóloga e ela lhe incentivou a montar o blog. Surgiu então em 2014 o blog “O Sobrevivente” – Relatos de um jornalista que escapou de uma hecatombe neurológica, mais conhecida como AVC. O blog já conta com mais de 250 postagens de Pio, muitas delas comentando fatos da política e da economia brasileiras. “A psicóloga me incentivou a voltar a escrever porque isto também ajuda na memória, que é prejudicada pelo AVC. O blog então é um espaço para falar sobre as pessoas com deficiência, contar histórias de antigas reportagens, trocar opiniões com os leitores sobre a situação política e econômica do Brasil”, reflete Pio.

E histórias o jornalista tem muitas. Em 1983, quando já morava no Paraná, ele visitou as Sete Quedas, em Guaíra/PR, que naquele ano foram alagadas para a formação do Lago de Itaipu, pouco antes da inauguração da hidrelétrica de Itaipu, que então era a maior do mundo. Pio e o fotógrafo Carlos Ruggi, que trabalhavam para o jornal O Estado de S. Paulo, foram navegar no Rio Paraná e conferir como estava a formação do lago – as Sete Quedas desapareceram com o represamento. “Naquele local após Guaíra o rio Paraná tem 24 Km de largura. Alugamos o barco de um pescador, Luís, que foi conosco visitar uma das várias ilhas que existiam antes das sete corredeiras e cachoeiras, isto pouco após raiar o dia. Imaginem que naqueles dias já haviam estreitado o caudal do rio perto das cachoeiras de 350 para 150 metros por causa da represa. Por isto os peixes não conseguiam mais subir o Paraná, só o cascudo, que era a fonte de renda dos pescadores. Fomos contar esta história. Luís nos levou até uma ilha perto das cachoeiras, o barulho das águas era forte e a correnteza imensa. Após duas horas decidimos voltar a Guaíra. Na ilha eu recolhi um mamão, que passou em um tronco na água. Subimos no barco, Luis deu a partida e 100 metros rio acima, o motor do barco quebrou. Luís jogou o gancho (âncora) nas pedras e ficamos ali várias horas, ele montou e desmontou o carburador do motor seis vezes ! Aquele mamão salvou nossas vidas. Fazia um calor infernal. Primeiro comemos a fruta – já passava do meio-dia. Depois usamos as conchas da casca do mamão para recolher e beber a água do rio”, lembra Pio.

O jornalista lembra que às 3 horas da tarde o motor finalmente deu a partida e eles conseguiram subir o rio até Guaíra. Pio conta que aquela vez no rio Paraná foi a primeira que sentiu a morte se aproximar. Quando teve o AVC, mais de 30 anos depois, a sensação foi diferente. “Escrevi uma crônica em meu blog em que acho que a morte é como se alguém desligasse uma chave elétrica. Tudo se apaga. Foi assim durante a cirurgia em que sofri o AVC. Não me lembro de nada. Não tenho memória da cirurgia e do AVC, ela só voltou quando estava na UTI dois dias após o AVC”, conta.

 

“Oba, achei o meu braço”

O jornalista diz que atualmente escreve um livro em que conta como foi sua recuperação das sequelas do AVC, inclusive com a recente recuperação dos movimentos do braço direito. “O livro vai se chamar ‘Oba, achei o meu braço’. Porque isso é muito estranho, repito. Quando você passa a ter a deficiência, perde o referencial de como era fisicamente antes. Isto a fisioterapia – e minha fisioterapeuta – me lembraram: eu redescobri como o braço direito é importante na marcha e no processo de caminhar novamente”, conta.

Outro objetivo de Pio é transformar a cidade de Jundiaí/SP na “Capital Brasileira da Acessibilidade”. Esta ideia ele teve após conversar com a então deputada federal Mara Gabrilli, que ele já conhecia muitos anos antes de sofrer o AVC. Pio diz que os municípios é que deveriam ter a missão de implantar no país inteiro as adaptações exigidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – LBI – do qual Gabrilli foi relatora em Brasília/DF.

“Nós precisamos transformar o município na entidade que conscientiza, certifica e fiscaliza os equipamentos urbanos. Esta é uma proposta para o Brasil inteiro. Eu vou mais além e sugiro que a Acessibilidade vire uma disciplina nos ensinos básico, médio e universitário”, comenta.

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