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Entrevista – Claudia Werneck

Por: hallak

Escritora, pesquisadora, articulista e palestrante, ela deixou uma carreira de jornalista bem sucedida para se dedicar à difusão e prática de uma sociedade inclusiva. 

Entre suas ações mais conhecidas está a criação, em 2002, da Escola de Gente – Comunicação em Inclusão.

Com especialização em Comunicação e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz, publicou 14 livros sobre direitos humanos, diversidade e inclusão para crianças, jovens e adultos, muitos também em espanhol e inglês. Seu livro “Quem cabe no seu TODOS ?” é uma obra de referência mundial. Consultora de organismos internacionais, como o Banco Mundial, é empreendedora social integrante de várias redes como a Ashoka e Fundación Avina no Brasil. Em 2011 recebeu a mais alta condecoração oferecida pelo Estado brasileiro: o “Prêmio Direitos Humanos” da Presidência da República.

A Escola de Gente – www.escoladegente.org.br – tem sede no Rio de Janeiro e atuação nacional e internacional. É uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) que trabalha para que leis e políticas públicas se transformem em práticas cotidianas inclusivas, principalmente para a população que tem deficiência e vive na pobreza. Os números impressionam: de 2002 a 2016, 17 países e 21 estados brasileiros realizaram atividades da Escola, com 485 mil pessoas mobilizadas e diretamente sensibilizadas para a causa da inclusão; 82 mil publicações sobre inclusão e direitos humanos distribuídas em diferentes formatos acessíveis; 7.268 horas de formação continuada para jovens por meio de vários projetos; cerca de 50 prêmios nacionais e internacionais e 700 fóruns, conferências e eventos relacionados a temas como inclusão, juventude, cultura e educação.

Uma curiosidade: Cláudia é mãe da atriz Tatá Werneck, fundadora do grupo teatral acessível “Os Inclusos e os Sisos – Teatro de Mobilização pela Diversidade”, que continua fazendo parte da Escola. Tatá é atriz da Rede Globo e faz sucesso na TV e no teatro, sendo vista hoje como uma das principais atrizes de comédia do País.

 

Revista Reação – Como você teve seu interesse despertado para as pessoas com deficiência ? O que a motivou ?

Cláudia Werneck – Despertou em 1991, quando fui chefe de reportagem da revista Pais & Filhos, ao escrever uma matéria sobre síndrome de Down. A minha consciência se expandiu e mudou radicalmente o meu modo de pensar e de viver, além de redirecionar a minha carreira. Na ocasião, fiquei perplexa com a falta de informação dos profissionais da área de saúde e educação que eu entrevistava sobre o assunto. Por meio da minha própria falta de informação, percebi que eu não era a jornalista com a visão ampla que imaginava ter, pois nunca havia pensado em todas as crianças, em todas as gestantes, em todas as famílias. Por conta dessa matéria, que foi premiada pela Associação Médica Brasileira, fui motivada a escrever o primeiro livro sobre síndrome de Down, o “Muito Prazer, eu Existo”, publicado em 1992.

 

RR – O lema da Escola de Gente é “comunicação em inclusão”. Como você analisa o papel da comunicação para uma efetiva inclusão das pessoas com deficiência ?

CW – Tudo passa pela comunicação. E é na comunicação que se dão as mais graves formas de discriminação. Eu me refiro ao processo de comunicação. Por exemplo, de que adianta pintar de vermelho um extintor de incêndio para uma pessoa que é cega  ? O quanto é discriminatório anunciar em um programa de rádio (ou rádio comunitária) uma oportunidade de emprego se o jovem surdo não escuta ? O ideal, nesse caso, seria que o anúncio viesse acompanhado da informação: “por favor, passe às pessoas surdas que você conhece essa informação”. Isso é comunicação acessível, para todas as pessoas. A mãe de todas as acessibilidades é a acessibilidade atitudinal. A ausência de acessibilidade na comunicação impede a liberdade de expressão e também interfere no processo democrático negativamente. Para a Escola de Gente não há desenvolvimento sem sustentabilidade. Não há vida sem sustentabilidade. Não há sustentabilidade sem acessibilidade. É a partir dessa conceituação que a Escola de Gente concebeu e executou, em seus 14 anos de existência, 32 projetos, praticamente todos envolvendo a formação de jovens mais aptos a não discriminar em função de desigualdades e diferenças de quaisquer naturezas. A ampla, diversificada, gratuita e cotidiana oferta de recursos de acessibilidade na comunicação é a marca nacional e internacional da Escola de Gente.

 

RR – Dentro da Escola, o teatro tem uma posição de destaque, com a realização de oficinas e palestras. Por que essa opção, como esse trabalho é desenvolvido, qual o objetivo dele ?

CW – São raras as iniciativas culturais no Brasil que possuem um viés social para a questão do preconceito e discriminação de pessoas com deficiência. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido pela Escola de Gente, através de projeto de arte e transformação social, com o grupo Os Inclusos e os Sisos – Teatro de Mobilização pela Diversidade, torna-se relevante porque tem o objetivo de construir uma sociedade mais informada e mobilizada para as questões relacionadas aos direitos humanos da população que tem deficiência e vive na pobreza. Atualmente estamos executando dois projetos na área do teatro acessível. O primeiro oferece 24 Oficinas de Teatro Acessível nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro para jovens entre 14 e 29 anos, com e sem deficiência. Essa é uma metodologia criada pela Escola de Gente e que vem sendo aprimorada continuadamente. O segundo é a II Mostra de Teatro Acessível, que tem o foco de sensibilizar a população para a prática do teatro acessível. Defino este projeto como circuito cultural acessível que passa e fertiliza algumas cidades dos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro com palestras, debates, apresentações e oficinas de teatro acessível. A Escola de Gente faz e mostra como se faz. São projetos de Lei Rouanet com patrocínio das empresas White Martins, MRS e Oi.

 

RR- Como tem sido a trajetória do grupo “Os inclusos e os Sisos”?

CW – Os Inclusos e os Sisos – Teatro de Mobilização pela Diversidade, projeto criado pela minha filha, a atriz Tatá Werneck, deu origem à área cultural da Escola de Gente. Ela estudava artes cênicas da UniRio, era uma jovem que participava de nossos projetos na área da educação e da comunicação, e teve a ideia de usar toda a formação que tinha para criar o grupo, que já nasce em 2003 praticando teatro acessível, quando não se falava nisso. Os Inclusos e os Sisos, hoje na sétima formação de atores e atrizes, se utilizam do humor para desconstruir ideias e abordagens antigas e equivocadas sobre inclusão, que acabam se tornando discriminatórias, e aproxima o espectador do tema de forma sutil, para que, naturalmente, ele se reconheça nas situações apresentadas e possa criticar a si mesmo. Todas as pessoas, no entendimento da Escola de Gente, são agentes e vítimas de processos de discriminação, ainda que não percebam. Por exemplo, no campo da cultura, esta discriminação se manifesta na ausência de intérprete de Libras ou de audiodescrição em espetáculos culturais. Um espetáculo que não ofereça medidas de acessibilidade previstas na lei impede ou minimiza o exercício do direito à cultura. Pessoas com deficiência, se desejarem, devem “navegar” pela cultura com liberdade para serem espectadores, produtores, dramaturgos, pensadores, enfim, o teatro acessível é um conceito libertador, amplo, democrático no pensar e no fazer. 

 

RR – No geral, são poucos espetáculos teatrais com projetos de acessibilidade, a companhia do ator Antonio Fagundes é uma das exceções, conforme mostramos na edição passada da Revista Reação. Quais as principais dificuldades ? As companhias não se interessam pela questão ?

CW – Eu faço uma distinção entre o conceito de teatro acessível que a Escola de Gente pratica, desdobramento dos meus livros, e que são a base teórica e conceitual de todos os nossos projetos, e que pode ser descrito de dois modos. Inicialmente, teatro acessível no sentido mais puro e radical, tem que ser gratuito, porque há uma relação inequívoca entre pobreza e deficiência. Em segundo lugar, deve ter todas as acessibilidades em todas as sessões, porque as pessoas com deficiência existem todos os dias, têm desejos e necessidades todos os dias, inspiram e expiram cultura todos os dias… Oferecemos todas as acessibilidades ainda que não haja uma pessoa com deficiência na plateia. Para que esse teatro acessível aconteça, é preciso ter um orçamento totalmente diferenciado desde o primeiro pensamento e planejamento do espetáculo. É o que eu chamo de orçamento de não discriminação. Esse é o fio condutor que faz com quem um teatro seja mais ou menos acessível… O quanto cada pessoa deseja investir nele, como ideia e prática ?

 

RR – Vocês estão apoiando, inclusive, um abaixo-assinado para a criação do Dia Nacional do Teatro Acessível, em 19 de setembro. Por que essa data e como está a campanha ?

CW – A proposta de instituir o Dia Nacional do Teatro Acessível foi da Escola de Gente, levada ao deputado Jean Wyllys e imediatamente incorporada por ele, que mobilizou em seguida outros/as parlamentares como Jandira Feghali, Mara Gabrilli, Rosinha da Adefal e Marta Suplicy. O Dia Nacional do Teatro Acessível é um desdobramento da campanha “Teatro Acessível. Arte, Prazer e Direitos”, criada pela Escola de Gente em 2011 e incorporada como conteúdo de política pública pelo Ministério da Cultura em 2013. Foi quando a Escola de Gente decidiu levar o tema ao Congresso e propor a criação de um dia temático. Assim, em maio de 2013, a Escola de Gente realizou a primeira audiência pública com total acessibilidade no Congresso Nacional, que legitimou o Dia Temático, a ser celebrado em 19 de setembro, mesmo dia em que se comemora o Dia do Teatro. Fizemos questão de escolher essa data, propositalmente, para que todo teatro seja acessível. O PL 6139 foi aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados e está para ser votado no Senado há mais de um ano.  O abaixo-assinado, que apoiamos incondicionalmente, foi uma iniciativa da Daniela Duarty, mãe da Estefany, de 10 anos, que tem deficiência visual. As duas assistiram ao espetáculo acessível oferecido pela Escola de Gente em Belém/PA, no ano de 2013, e foi a única vez que um teatro infantil com total acessibilidade esteve na cidade. Assim, ao saber da nossa Campanha, ela procurou a Change.com e propôs o abaixo-assinado, que tem mais de 20 mil assinaturas. Para saber mais sobre a campanha, visite o site: www.teatroacessivel.org.br.

 

RR – Você tem muitos livros publicados e inclusive abriu uma editora. Qual é seu foco de atuação nesse sentido ?

CW – A WVA editora foi criada em 1993 pelo meu marido, Alberto Arguelhes, e já nasce especializada em inclusão, tornando-se a primeira no Brasil a produzir livros com acessibilidade, com muitos formatos acessíveis ao mesmo tempo. A Escola de Gente nasceu do investimento social privado praticado pela WVA, ações agrupadas em torno do projeto “Muito prazer, eu existo”, nome do meu primeiro livro. Este projeto foi o embrião da Escola de Gente. Eu sou autora de 14 livros para crianças e adultos sobre inclusão, publicados em Português, Inglês e Espanhol. Cada livro tem relação com um projeto desenvolvido pela Escola de Gente. O livro “Sonhos do Dia”, por exemplo, publicado em 2011, foi o primeiro no Brasil a ser publicado em nove formatos acessíveis e deu origem à campanha “Todas as Pessoas Têm Direito a Conhecer Todas as Histórias”. A obra foi relançada em 2015, com 10 formatos acessíveis, com apoio do programa “Criança Esperança”. Todas as crianças precisam ter acesso às histórias contadas pela sua humanidade. Em sala de aula ou em família, livros acessíveis, como a obra “Sonhos do Dia”, dão a crianças, com e sem deficiência, a oportunidade de lerem juntas, tendo acesso, simultaneamente, aos conteúdos de cada página. Ler um livro é uma expressão que deve ser revisitada e expandida, porque não combina com a inclusão, que leva em conta múltiplos modos de acessar o livro, todos legitimamente humanos e de igual valor.

 

RR –  Com tantos anos de trabalho na área da inclusão, como você analisa a situação atual do país nessa questão ?

CW – No que se refere à educação inclusiva, nós caminhamos muito. O ingresso de estudantes com deficiência no sistema regular de ensino, especialmente na mesma sala de aula que os/as demais estudantes, se traduz numa curva ascendente como poucas na educação. Avançamos nas políticas e nas leis. O Ministério da Educação implementou cursos presenciais e de educação à distância para a formação de professores/as, aprimorou ou criou rubricas que permitiram obras de acessibilidade física em escolas, apoio para material pedagógico com acessibilidade comunicacional – eu mesma participei de vários desses momentos. Estava tudo maravilhoso ? Claro que não. Séculos de discriminação sustentados pela repetição do famoso mantra “A escola não está preparada” criam uma atrofia na crítica e na esperança das pessoas. A inclusão não é mágica ! Ela é o resultado de um esforço contínuo de todas as pessoas envolvidas na educação de um país, algumas com participação mais direta, outras com participação indireta, mas sempre cúmplices da escola secular e discriminadora que temos. É importante lembrar que os órgãos federais dependem da cooperação e atuação dos municípios e dos estados na elaboração de políticas públicas especificas, que dependem, por sua vez de rubricas orçamentárias que promovam as mudanças necessárias e urgentes.

 

RR – Quais são seus planos pessoais na área e para a Escola da Gente em 2017 ?

CW – Não pretendo parar de respirar nem de beber água. Isso significa que a Escola de Gente e eu seguiremos inovando e surpreendendo quem acompanha nossos processos e conquistas nesses 15 anos de existência, nos quais trabalhamos em 17 países e em todas as regiões do Brasil, sensibilizando por meio de palestras, oficinas, eventos, espetáculos teatrais, livros, pesquisas, programas de rádio e campanhas na mídia quase 500 mil pessoas. Mas o que faz uma organização caminhar com vigor e dignidade não é mobilizar quem está fora dela. É continuar surpreendendo, assustando e apaixonando a própria equipe, cada pessoa da equipe.

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