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Entrevista – Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

Por: hallak

Primeira pessoa com deficiência a assumir a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, figura líder da antiga CORDE por muitos anos, sua militância, desde o final da década de 70, a tornou uma das mais conhecidas e respeitadas figuras do movimento em todas as frentes. No momento, afastada da área governamental, continua se empenhando e se posicionando na luta dos direitos de todos.

 

 

Izabel Maior tornou-se uma pessoa com deficiência física em 1976. É médica fisiatra e professora aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Juntamente com sua vida profissional, teve intensa atuação na luta por direitos das pessoas com deficiência, sendo inclusive a coordenadora do órgão que antecedeu a o que é hoje uma Secretaria, a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – a antiga CORDE – onde tudo começou e a pessoa com deficiência iniciou sua trajetória de ganhar notoriedade, reconhecimento e respeito. Recebeu da Organização dos Estados Americanos (OEA) um prêmio por sua “contribuição ao desenvolvimento de um continente mais inclusivo”, em 2010, e lançou o livro e filme-documentário “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”, realizado pela Secretaria de Direitos Humanos em parceria com a Organização dos Estados Ibero-americanos, entre muitas outras atividades.

Atualmente, é membro do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro e integrante do Conselho Estadual para a Política de Integração da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro. Integra ainda a Comissão Executiva do Fórum Permanente UFRJ Acessível e Inclusiva, instância do Gabinete da Reitoria. E ainda acha tempo para elaborar artigos, consultorias, vídeos, programas e palestras sobre inclusão. Vamos saber mais das atividades dessa grande expoente do segmento:

Revista Reação – Você esteve há pouco em Brasília/DF, na Câmara Federal, onde estão em discussão mudanças na Previdência. A alteração no BPC (Benefício de Prestação Continuada) vai impactar diretamente pessoas com deficiência e idosos. Qual sua avaliação ?

Izabel Maior – Participei da audiência pública da Comissão Especial da Reforma da Previdência, PEC 287/2016, em 22 de fevereiro. O atual governo apresentou uma proposta que prejudica profundamente a maioria da população brasileira e os direitos constitucionais das pessoas com deficiência estão na mesma situação. No caso do BPC, a reforma pretende desvincular seu valor do salário mínimo, mas não esclarece qual valor terá. Altera os critérios da concessão, inclusive elevando a exigência da idade mínima de 65 para 70 anos, pois este benefício também se destina aos idosos muito pobres. O BPC foi a única emenda popular aprovada na Assembleia Nacional Constituinte, 1986-88, portanto é um direito social constitucional e imprescindível para evitar que pessoas com deficiência e idosos, em situação de dupla vulnerabilidade pessoal e social, vivam desprotegidos pelo Estado.

RR – Quanto o BPC representa atualmente nos gastos do governo ?

IM – Trata-se de um programa social de redistribuição de renda que retira da linha da pobreza cerca de 4,4 milhões de pessoas com deficiência e idosos, com orçamento aproximado de 40 bilhões anuais, dados de 2015. Para ser elegível, o beneficiário comprova que a renda per capita familiar está abaixo de 1/4 do salário mínimo. Equivale a R$ 7,80 por dia para cada familiar. Importante esclarecer que a fonte de recursos do BPC não é a Previdência e sim o COFINS, uma das contribuições das empresas e, portanto, não concorre com recursos para aposentadorias e pensões previdenciárias e, obviamente, nada é subtraído dos trabalhadores. Essa informação não foi prestada pelo governo, o que confunde a opinião pública e parlamentares. O BPC faz parte da política de Assistência Social, não é aposentadoria da Previdência, é passível de revisão e interrupção e não gera décimo terceiro nem pensão. Desse modo, os argumentos do governo na PEC 287/2016 são insustentáveis para alterar um programa assistencial que foi definido na Constituição Federal. Tenho certeza que equilibrar a Previdência Social não pode passar por mexer com os mais pobres, para quem o BPC garante a subsistência, quer sejam pessoas com deficiência ou idosos com 65 anos ou mais.

RR – Outra alteração prevista é sobre a aposentadoria por invalidez. O que estão querendo mudar e como as pessoas com deficiência serão atingidas ?

IM – A aposentadoria por invalidez é aquela concedida a um servidor ou segurado que, por alguma doença ou acidente, deixa de apresentar condições para o trabalho. Este tipo de benefício contributivo é uma aposentadoria que não tem relação obrigatória com a deficiência. A PEC 287 muda a terminologia de invalidez para “aposentadoria por incapacidade” (referindo-se à incapacidade para o trabalho), o que me parece apropriado. Entretanto, a reforma faz uma grande distinção entre incapacidade por acidente de trabalho e a decorrente de outras causas. Para a primeira, admite que o valor da aposentadoria seja calculado com base em 100% do valor das contribuições previdenciárias. Para os casos em que a incapacidade se der por outros agravos, como doenças ou acidentes fora do trabalho, a regra será a mesma das aposentadorias em geral – 51% do valor de contribuição mais 1% para cada 12 meses de contribuição feita. Significa dizer, que haverá casos com aposentadorias de valor muito baixo, embora a incapacidade possa ser grave e gere custos elevados para aquela pessoa. Em busca de redução de “gastos”, a Reforma não tem flexibilidade para acomodar a diversidade de situações e os direitos previdenciários dos contribuintes serão mais desrespeitados.

RR – E para a aposentadoria das pessoas com deficiência, que inclusive foi regulamentada recentemente, em 2013, qual é a proposta do governo ? Qual sua avaliação ?

IM – As pessoas com deficiência contribuintes da Previdência Social, tanto segurados como servidores, por motivo de desgaste funcional precoce, obtiveram o direito à aposentadoria especial antecipada, de acordo com a Emenda Constitucional 47/2005, que alterou os artigos 40 e 201 da CF. A Lei Complementar 142/2013 e seus regulamentos estabeleceram os critérios de avaliação funcional. De acordo com a regra atual, pode haver redução de 10 anos de contribuição nos casos avaliados como grau de deficiência grave, 6 anos para o grau moderado e 2 anos no grau leve. Não há limite de idade, pois são exatamente o envelhecimento e o desgaste funcional precoces que motivam a aposentadoria especial. Somente para os casos com 15 anos de contribuição, a lei determinou 60 anos para os homens e 55 anos para as mulheres, comprovada a existência da deficiência por igual período. O valor da aposentadoria é 100% nos casos de cumprimento do tempo de contribuição exigido conforme o grau de deficiência e estabeleceu 70% do valor do benefício de contribuição mais 1% por ano de contribuição nos outros casos. A Reforma da Previdência determina redução máxima de 5 anos no tempo de contribuição; fixa em no máximo 10 anos, a redução da idade para aposentadoria e deixa o cálculo do valor da aposentadoria em aberto, seguindo a proposta geral. Tudo é impreciso. Com a reforma, os casos graves de deficiência terão de contribuir 5 anos ou mais além do que fazem hoje, pois a redução de 10 anos passará para no máximo 5 anos; precisarão alcançar a idade mínima de 55 anos e terão o valor da aposentadoria reduzido de 100% para 51% mais 1% por cada ano de contribuição. Assim, cumprindo 20 anos de contribuição (casos de deficiência grave), o trabalhador receberá somente 71% do valor do benefício de contribuição. Passaria a ser uma aposentadoria proporcional. Na prática, todos os trabalhadores com deficiência que precisam da aposentadoria especial antecipada serão drasticamente prejudicados.

RR – Alguns deputados federais, inclusive da própria base aliada, estão propondo uma emenda sobre as pessoas com deficiência para que elas não sejam tão afetadas. Você concorda com os termos e acha que há condições de aprovação pela Câmara ?

IM – Acredito que os parlamentares rejeitarão as alterações descabidas no BPC, foi essa a percepção que tive no debate com a Comissão – parlamentares da oposição e da base aliada concordando que BPC não deve ser tratado nessa reforma. Deveria acontecer uma discussão técnica, que considerasse a questão humana, mas, lamentavelmente, predomina o jogo partidário. Pensando no Legislativo, o mais lógico será o Relator acolher a Emenda Nº 2/2017, apresentada pela deputada Rosinha da Adefal, a qual propõe excluir qualquer menção ao art. 203 da Constituição (BPC) na reforma. Quero também ressaltar a Emenda Nº 1/2017, dos deputados Eduardo Barbosa, Mara Gabrilli, Otávio Leite, Carmen Zanotto e Leandre, que preserva a vinculação do BPC ao salário mínimo, mantém a idade de 65 anos para o acesso dos idosos muito pobres e remete quaisquer outros critérios para lei, o que de fato existe hoje.

 

RR – Você começou sua militância no movimento das pessoas com deficiência na década de 70, numa época em que praticamente não existiam direitos assegurados a esse grupo. Quais as principais mudanças que você destaca até agora ?

IM – Naquela época, não havia legislação e tampouco políticas públicas direcionadas às pessoas com deficiência. As associações não governamentais incumbiam-se dos atendimentos, como educação em escolas especiais, reabilitação em algumas capitais e repasse de recursos da LBA, com perfil assistencialista, dentro do modelo biomédico da deficiência. É importante reconhecer o valor dessas iniciativas que supriram a omissão do Estado. Fazer reunião e reclamar no período do regime militar exigia coragem e articulação, tudo isso sem as redes sociais. E foi assim que surgiu a mudança central – as organizações lideradas por pessoas com deficiência para exercerem o protagonismo. Começamos a ter voz e denunciar a discriminação e a falta de políticas de inclusão social. Acredito que o movimento, ao falar de acessibilidade como direito, encontrou sua trincheira de luta por autonomia e oportunidades iguais de participação social.

RR – Qual sua avaliação do tratamento dado à promoção dos direitos das pessoas com deficiência no âmbito governamental até agora ?

IM – O compromisso dos governos tem altos e baixos. Avançamos muito com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status constitucional, em 2008, e nas ações, cito: a conquista da Secretaria Nacional, o fortalecimento do CONADE e a ampliação da rede de conselhos nos estados e municípios, conferências de direitos, bem como a disseminação de informação, programas de acessibilidade e o desenvolvimento de Tecnologia Assistiva. Destaco o impulso na Educação Inclusiva, crescimento da inserção no mercado de trabalho, a reserva de vagas nos concursos públicos, os centros especializados de reabilitação e a ampliação da lista de equipamentos concedidos pelo SUS. Houve investimento nos atletas paralímpicos com resultados positivos. As experiências de gestão transversal, como a Agenda Social (2007-10) e o Plano Viver sem Limite, em 2011, trouxeram mais eficiência e alcance para as políticas inclusivas. Por outro lado, preocupa-me a indefinição da proposta do atual governo.

RR – O Brasil é considerado um país com uma legislação das mais completas no que se refere a pessoas com deficiência. O difícil parece ser a aplicação dessas leis. Quais são os principais problemas nesse sentido e o que poderia ser feito para modificar essa situação ?

IM – No Brasil, não aplicar as leis faz parte da cultura de impunidade, que infelizmente persiste. Gestores públicos, a começar pelos prefeitos, são os mais omissos e, dessa forma, as pessoas com deficiência seguem excluídas dos programas de desenvolvimento e empresários continuam a descumprir as normas. O melhor exemplo é a falta de acessibilidade nas cidades, na mobilidade, nos serviços básicos para os cidadãos. Quem fiscaliza, quem aplica as multas ? Nesse contexto, atuação dos conselhos de direitos precisa ser reforçada  e considero essencial a intervenção, mais ágil possível, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Legislativo e dos Tribunais de Contas. A Justiça, em grande parte, desconhece os direitos das pessoas com deficiência e profere sentenças que, por exemplo, liberam empresas de respeitar a lei da reserva de cargos. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei Nº 13.146/2015 – LBI, estabeleceu crimes e infrações administrativas por discriminação, tanto para os agentes públicos como para instituições privadas. O Brasil tem quase tudo, mas ainda para poucas pessoas com deficiência, deixando a descoberto municípios menores, com baixo IDH e com limitados recursos orçamentários. Então, fica evidente que o desafio principal está nos municípios.

RR – Depois dessa sua longa militância, o que você gostaria de dizer às pessoas com deficiência, leitoras da Revista Reação ?

IM – Esta é a pergunta mais difícil que frequentemente me fazem. Penso que cada pessoa e cada família vai lidar com a situação de deficiência de acordo com seus recursos emocionais e seu contexto de vida, no seu tempo. Desde cedo aprendi que a deficiência não é minha, pois depende das atitudes ao meu redor e da acessibilidade existente. Não é fácil lidar com sucessivas barreiras, porém é possível perseguir seus sonhos. Considero que o ativismo social é o caminho para as pessoas com deficiência serem respeitadas. Nem todos precisam ser ativistas do movimento, mas estar bem informado ajuda a divulgar direitos e deveres. Como se sabe, a atuação do movimento social tem de ser permanente, para consolidar seu espaço de participação. Então, gostaria de conhecer mais pessoas jovens envolvidas no movimento social, trazendo dinamismo e ideias inovadoras, especialmente para as associações, os conselhos de direitos e a gestão pública. Mesmo que calçadas acessíveis e a sociedade inclusiva pareçam utopia no momento, não importa, contanto que cada criança com deficiência cresça com igualdade de oportunidades e todas as pessoas com deficiência tenham uma jornada mais leve e muito mais feliz. Boa sorte!

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