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José Carlos Morais

Por: hallak

Baleado aos 25 anos, o médico gaúcho radicado no Rio de Janeiro ficou paraplégico. Hoje, aos 71 anos de idade, conta em livro o quanto sua vida foi repleta de conquistas no esporte e na profissão

No dia 3 de dezembro de 1972 a vida do jovem médico José Carlos Morais mudou de maneira implacável: ele foi baleado na Avenida Vieira Souto, em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro e ficou paraplégico. José Carlos, então com 25 anos, foi levado ao Hospital Geral do Rio. Ficou internado até setembro de 1973, quando começou a fisioterapia na ABBR – Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, no bairro do Jardim Botânico. José Carlos Morais faz a seguinte avaliação da sua vida: “Hoje, aos 71 anos de idade, minha vida é muito melhor e mais interessante do que era aos 25 anos. Se eu encontrasse o assaltante que me baleou naquela madrugada, o agradeceria”, diz em meio a uma gargalhada.

Os primeiros 6 meses após o assalto, contudo, foram muito difíceis. “Achavam que eu não poderia nem mais me sentar. Naquela época a neurologia estava mais atrasada, a Medicina não ensinava nada disso na faculdade”, lembra José Carlos. Quando foi para a ABBR, ele iniciou a fisioterapia e entrou em contato com o basquete. No começo dos anos 70, o basquete para cadeirantes começava no Brasil, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

José Carlos teve apoio da família, que veio de Pelotas/RS, sua cidade natal, durante a sua hospitalização e a fisioterapia. Formado em Medicina pela Universidade Católica de Pelotas/RS, ele morava no Rio desde 1971, onde foi fazer residência médica. Explica que quando foi baleado no assalto, estava com tudo pronto para voltar ao Rio Grande do Sul, havia sido aprovado em um concurso para médico na capital Porto Alegre. “A verdade é que, após entrar em contato com o basquete, decidi ficar no Rio. Primeiro por causa do clima quente e em segundo lugar porque, naqueles meados dos anos 70, se voltasse para o Sul, onde é que eu jogaria basquete ? Não havia essa possibilidade”, conta.

O então jovem, saiu da ABBR em 1975 com dois planos: jogar basquete e fazer residência médica em patologia. Em 1977, ele concluiu a residência e ingressou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde virou professor no campus da capital (o chamado “Fundão” na Ilha do Governador). O trabalho e o basquete ocuparam o tempo de José Carlos. Em 1980, ele participou da Equipe Brasileira que jogou a Paraolimpíada na Holanda. Foi a primeira das três paraolimpíadas que jogou no time brasileiro de basquete para cadeirantes, as outras foram na Inglaterra, em 1984 e  nos Estados Unidos, em 1986. Em 1987, após concluir mestrado na UFRJ, ele partiu para os Estados Unidos, onde morou 15 meses na Califórnia, fazendo um ‘Follow’, ou treinamento em serviço, em um hospital de Los Angeles. “A minha ida para a Califórnia teve três motivações: eu queria ir para um lugar onde fizesse sol o ano inteiro, onde a medicina fosse de ponta e o terceiro motivo foi jogar tênis em cadeira de rodas”, diz. O tênis em cadeira de rodas ele havia descoberto um pouco antes, também nos Estados Unidos, onde cadeirantes entusiastas começavam a praticar o esporte.

Paixão pelo tênis

De volta ao Brasil em 1988, José Carlos foi um dos primeiros tenistas cadeirantes do país. Ele conta que teve contato com o tênis no Rio Grande do Sul, ainda criança, quando seu pai o levava para jogar, mas que na época o esporte não o entusiasmou. “O entusiasmo surgiu bem mais tarde nos Estados Unidos. Os caras perceberam que eu sabia segurar a raquete, rebatia bem. Foi ali que começou para valer”, conta. “Fui jogar basquete em 1988 nos Estados Unidos e fui assistir à partida de tênis de um cadeirante americano. Fiquei entusiasmado e lá mesmo comecei a jogar tênis, primeiro com jogadores em pé, depois com cadeirantes. De volta ao Brasil comecei a viajar pelo país com amigos para disseminar o esporte. Hoje o Brasil tem pelo menos uma centena de tenistas cadeirantes e três deles estão no ranking dos 100 melhores do mundo”, afirma.

Enquanto isso, a vida seguia. José Carlos namorou e ficou casado por 8 anos com a ex-mulher. Eles se separaram e o médico conheceu sua atual esposa, com a qual teve dois filhos: uma moça que hoje estuda Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e um rapaz que está com 18 anos.

“A independência depende de você e da sociedade. Se você tem movimento nos braços, consegue fazer tudo. Tomar banho, ir ao banheiro sozinho, dirigir automóvel, trabalhar, namorar. O que depende da sociedade, aí não depende de você. É a guia da calçada que não é rebaixada, a sala de cinema que não é adaptada, o elevador do ônibus que não funciona”, comenta.

Em comparação às dificuldades que os cadeirantes enfrentavam no Brasil na década de 1970, José Carlos afirma que hoje a situação melhorou, embora esteja longe do ideal, como é nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. “Atualmente, o Brasil fabrica realmente tudo o que um cadeirante precisa, principalmente as cadeiras de rodas, que melhoraram muito. No meu caso, só uso almofadas importadas, ainda são muito melhores que as nacionais”, diz.

Segundo ele, os problemas continuam no transporte de ônibus. “Muitos ônibus são antigos, funcionam com elevador (os modernos têm rampas, mais rápidas) e nem sempre ele funciona”. Já no metrô, lembra que as 41 estações do Metrô do Rio de Janeiro foram todas adaptadas para serem usadas pelos cadeirantes. Em São Paulo, o mesmo ocorreu nas estações construídas até 2003 – as inauguradas após aquela data, como todas da linha 4, já foram construídas prevendo a acessibilidade.

Homem viajado, o médico lembra que nem tudo na Europa é melhor. Muitas estações dos metrôs de Londres e Paris, conta, não foram adaptadas para pessoas com deficiência, em geral porque são muito antigas e não existem os recursos para instalar elevadores e rampas. O mesmo ocorre em algumas pousadas nos países europeus, que ficam em castelos e casas muito antigas e por isto não têm acessibilidade para cadeirantes. “Uma dificuldade que persiste no Brasil é nos hotéis e pousadas. Muitos ainda não cumprem com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (de 2015), o qual prevê que pelo menos 5 % dos quartos sejam adaptados para pessoas com deficiência. Aí imaginem a situação quando vamos fazer um torneio de tênis com 40 cadeirantes em uma pousada: eu vejo quais são os caras mais ferrados e eles vão para os quartos adaptados. Os outros vão para os quartos comuns”, conta.

Em 2015 José Carlos decidiu escrever um livro e contar sua experiência de vida. O livro “Roda Vida: Memórias de um Cadeirante” (Editora Jaguatirica) foi lançado no final do ano passado. O médico afirma que não é “exemplo de nada”.

“Eu tive uma família estruturada, tive dois casamentos bons, minha profissão. Sempre tive uma cabeça boa, isso faz a diferença na vida. Se o sujeito for um mau caráter, um vigarista, ele continuará a ser o que era se virar cadeirante. O que aconteceu comigo é que no começo tomei uma porrada e fui ao fundo do poço. Eu sai dessa e consegui”. Aposentado, José Carlos hoje mora em Niterói/RJ e coordena o projeto Cadeiras na Quadra, destinado a crianças cadeirantes que jogam tênis.

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