PARTE 2
V – FALTA DE ESCLARECIMENTO
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), entre outras qualidades, apresenta um primoroso detalhamento de conceitos, sistemas, processos, medidas e exemplos. Entretanto, ela deixou sem esclarecimento alguns pontos muito importantes, o que propicia entendimentos equivocados por parte das pessoas que utilizam o texto para fundamentar suas opiniões.
Um desses pontos está no Artigo 1, quando menciona a palavra impedimentos. Faltou esclarecer, por exemplo, que o conceito impedimentos se refere a “problemas de função (ou estrutura) do corpo”. E mais:
- “Os impedimentos de estrutura do corpo podem envolver uma anomalia, defeito, perda ou outro desvio significativo”… e… “não são o mesmo que patologia subjacente, mas são manifestações daquela patologia”.
- “Os impedimentos podem ser temporários ou permanentes; progressivos, regressivos ou estáticos; intermitentes ou contínuos”.
Estes e outros esclarecimentos constam no documento International Classification of Functioning, Disability and Health [publicado em 2001, 5 anos antes da CDPD], equivocadamente traduzido como Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2003) (grifo meu).
Outro ponto está na citação das naturezas do impedimento, usando a expressão “de natureza física, mental, intelectual ou sensorial” (grifos meus).
[A] É necessário esclarecermos que o impedimento de natureza intelectual se refere ao déficit cognitivo, principal fator da deficiência intelectual. Por outro lado, a natureza mental do impedimento faz parte do quadro da saúde mental (incluindo os transtornos mentais, geradores das deficiências psicossociais) A inserção do tema saúde mental (daí a palavra “mental” no Artigo 1 da CDPD), representa uma histórica vitória da luta de pessoas com deficiência psicossocial, familiares, amigos, usuários e trabalhadores da saúde mental, provedores de serviços de reabilitação física ou profissional, pesquisadores, ativistas do movimento de vida independente e demais pessoas em várias partes do mundo (SASSAKI, 2010; SASSAKI, 2011a: SASSAKI, 2011b). Exemplos de expressões ambíguas: (1) “distúrbios intelectuais e/ou mentais” [Quem escreveu esta expressão acha que o termo “distúrbio intelectual” seria diferente ou sinônimo de “distúrbio mental”?]. (2) “pessoa com deficiência mental ou intelectual” [Por que alguém usaria esta expressão achando que o termo “deficiência intelectual” seria sinônimo de “deficiência mental”? Ou para ele uma “pessoa com deficiência mental” seria diferente da “pessoa com deficiência intelectual”?].
Proponho que a palavra “mental”, que consta no Artigo 1, seja substituída oficialmente por “psicossocial”, que diversos países já utilizavam antes da CDPD. Assim, além de darmos visibilidade à categoria deficiência psicossocial, evitaríamos a confusão com o adjetivo “mental” (muito utilizado no termo “deficiência mental” durante várias décadas antes de ser substituído por “deficiência intelectual”).
[B] O termo natureza sensorial é ambíguo: leitores familiarizados com os jargões utilizados no campo da deficiência sabem que esse termo se refere apenas aos sentidos da visão e da audição. Mas, etimologicamente, ele abrange também o tato, o paladar e o olfato – o que complicaria o entendimento sobre quais são os tipos de deficiência cobertos pela CDPD. Por que não dizer especificamente “visual” e “auditiva”, substituindo “sensorial”?
[C] Faltou explicitar, no Artigo 1, o impedimento de natureza múltipla, que é a presença simultânea de duas ou até cinco naturezas na mesma pessoa.
[D] Faltou acrescentar a categoria surdocegueira, que não pode ser entendida como um tipo de “deficiência múltipla”.
VI – ERRO DE TERMINOLOGIA
Todo o texto da CDPD deixa implícito que há diferença conceitual entre os termos autonomia e independência, pois que eles não são sinônimos um do outro. Exemplos:
[Preâmbulo: n] “autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade de fazer as próprias escolhas”.
[Artigo 3: a] “a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas”.
[Artigo 16: 4] “autonomia da pessoa”.
[Artigo 19] “vida independente” (…) com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoas”.
[Artigo 25: d] “autonomia (…) das pessoas com deficiência”.
[Artigo 26: 1] “o máximo de autonomia” (neste caso, o texto original em inglês diz “the maximum independence” e o espanhol diz “la máxima independencia”, quando o correto é “the maximum autonomy”, como está no original em francês: “le maximum d’autonomie”).
Porém, o Artigo 20 (intitulado Mobilidade Pessoal) diz: “Os Estados Partes tomarão medidas efetivas para assegurar às pessoas com deficiência sua mobilidade pessoal com a máxima independência possível”. Neste caso, o termo correto é “autonomia” no lugar de “independência”. Resumindo, independência é a faculdade de tomar decisões e fazer escolhas, enquanto autonomia é a capacidade de domínio no ambiente físico (perante coisas) e social (perante pessoas) para executar, parcial ou totalmente, movimentos com o próprio corpo.
Há algumas pessoas com deficiência física que têm mobilidade reduzida e há pessoas idosas, gestantes, lactantes, adultas carregando criança de colo, as quas podem ter (temporária ou permanentemente) mobilidade reduzida, sem necessariamente ter uma deficiência ao mesmo tempo (Decreto 5.296/2004, art. 5º, §1º, inc. II; Lei 13.146/2015, art. 3º, inc. IX).
VII – CONTRADIÇÃO ENTRE OS CONCEITOES
O Preâmbulo da CDPD, no parágrafo “e”, diz:
- Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas; (grifos meus).
Ora, em outras palavras, essa afirmação estaria dizendo que, por exemplo, “a deficiência deixaria de existir: (a) se essas barreiras forem eliminadas ou (b) se as pessoas com deficiência não entrarem em interação com as barreiras existentes na sociedade”, o que constituiria um conceito, no mínimo, equivocado e fruto do modelo médico da deficiência.
Proponho, então, que o parágrafo “e” do Preâmbulo tenha a seguinte redação:
- Reconhecendo que a deficiência e o impedimento são conceitos em evolução e que as barreiras atitudinais e ambientais impedem a plena e efetiva participação das pessoas com deficiência na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas;
Por sua vez, o Artigo 1 diz que “[os impedimentos], em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua [das pessoas com deficiência] participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Repetindo, “os impedimentos podem obstruir a plena participação”. Ora, atualmente, entendemos que não são os impedimentos (presentes na pessoa com deficiência) que podem obstruir a participação dessa pessoa na sociedade.
Em sentido positivo, a remoção das barreiras existentes na sociedade abre espaços (daí a expressão “em igualdade de oportunidades”) para a participação plena, seguindo o modelo social da deficiência. A deficiência continuará existindo na pessoa, mesmo após a eliminação das barreiras da sociedade; a pessoa com deficiência não deixará de ter essa deficiência, mas, com as barreiras ambientais eliminadas, esta pessoa – para participar plenamente da vida da sociedade – não terá de enfrentar a incapacidade, a dificuldade e a impossibilidade impostas pelas barreiras porventura existentes.
Essa ideia do Artigo 1 – de que “[os impedimentos], em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua [das pessoas com deficiência] participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” – é dos tempos do paradigma da integração, que segue o modelo médico da deficiência já superado, e essa ideia é inaceitável em plena era do paradigma da inclusão.
Portanto, proponho que o segundo parágrafo do Artigo 1 da CDPD seja substituído pela seguinte redação:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, psicossocial, intelectual, visual, auditiva, múltipla ou outra, e cuja plena e efetiva participação social em igualdade de condições com as demais pessoas possa ser obstruída por diversas barreiras construídas, naturais e atitudinais existentes na sociedade.
Finalmente, acrescento que a Portaria Conjunta MDS/INSS n. 1, de 24/5/2011, estabelece que serão considerados pela perícia médica como “impedimentos de longo prazo” aqueles que perdurarem por, no mínimo, dois anos”.