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Relendo o conceito de inclusão afirmado na C.D.P.D. em 2006

Por: admin

PARTE 1

Dentre os muitos avanços conceituais trazidos pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), destaca-se a inclusão da categoria deficiência psicossocial ao lado daquelas conhecidas há tempos: a deficiência física, a deficiência intelectual (substituindo o termo deficiência mental), a deficiência sensorial (subentendendo-se a visual e a auditiva), e, implicitamente, a deficiência múltipla.

I – DÚVIDAS E CONFUSÕES

Tornou-se cada vez mais necessário o esclarecimento das dúvidas e confusões surgidas em relação ao conceito de deficiência psicossocial, que foi associado equivocadamente ao conceito de deficiência intelectual (que, bem antes da CDPD, já havia substituído o termo deficiência mental).

Dúvidas, tais como: “Por que a CDPD colocou juntos os adjetivos ‘mental’ e ‘intelectual’ na expressão ‘impedimentos (…) de natureza física, mental, intelectual ou sensorial’ (Artigo 1), uma vez que esse adjetivo ‘mental’ já foi substituído por ‘intelectual’?” RESPOSTA: Ler, mais adiante, a seção IV – RELEITURAS, item 3 (intitulado “É correta a interpretação 3”).

Confusões, tais como: “Em uma tradução da CDPD consta a expressão com as mesmas palavras do parágrafo anterior, mas em outra tradução não consta a palavra ‘mental’ (Artigo 1) … Então, qual destas traduções é a correta, fiel ao texto original em inglês?” RESPOSTA:A tradução – que traz a palavra “mental” – é a tradução oficial, autorizada pelo Governo Federal e publicada pela Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Ela se encontra no site: http://www.direitoshumanos.gov.br. A edição oficial mais recente é a de 2012 (4ª edição, revista e autorizada). Por outro lado, na internet, encontram-se diversas traduções que não são oficiais, não foram autorizadas pelo Governo Federal, não mantiveram a palavra “mental” no Artigo 1 e não utilizaram termos corretos em outros Artigos, o que acabou distorcendo o sentido de certos conceitos e frases do texto original escrito nos seis idiomas praticados na ONU.

II – O QUE DIZ A PRÓPRIA CDPD

O Artigo 1 (intitulado Propósito) aponta somente as pessoas com deficiência como o público-alvo da Convenção, ao dizer que:

“O propósito da presente Convenção é promover e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.” (grifos meus)

Logo em seguida, no mesmo Artigo, há uma afirmação sobre quem são essas pessoas, a saber:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial (…)” (grifos meus)

Convém salientar que o termo “deficiência psicossocial” não é o mesmo que “transtorno mental”. A expressão “pessoa com deficiência psicossocial” refere-se a uma pessoa com sequela de transtorno mental”, ou seja, uma pessoa cujo quadro psiquiátrico já se estabilizou e, em muitos casos, não mais oferece perigo para ela ou para outras pessoas. Os transtornos mentais mais comuns são: esquizofrenia, depressão, síndrome do pânico, transtorno bipolar, autismo. A mesma pessoa pode ter um transtorno mental (fase aguda) e depois evoluir para uma deficiência psicossocial (fase crônica). O dr. João Navajas já dizia em 1997: “Se houver sequelas [de transtorno mental], essas pessoas poderão se adequar às limitações sem deixar suas atividades do dia a dia, como estudar ou trabalhar” (Sociedade Brasileira de Psiquiatria e Comunidade Terapêutica Dr. Bezerra de Menezes).

Como exemplos, alunos com certos tipos de transtorno global do desenvolvimento (TGD) já na década de 90 do século 20 frequentaram escolas públicas. Hoje, outras pessoas com esse mesmo quadro diagnóstico, poderão fazer parte do segmento das pesso as com deficiência psicossocial e beneficiar-se das medidas asseguradas na CDPD. Alguns desses tipos são: síndrome de Rett, síndrome de Asperger, autismo (“Autismo: inserção social é possível?”, Cinthia Pascueto, Jornal da UFRJ, ed. n. 200, 24/4/03) e psicose (http://lucimaramaia.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=15&Itemid=8).

Em documentos a respeito da CDPD, a ONU usa o termo “deficiência psicossocial” ao comentar os impedimentos de natureza mental, ou seja, relativa à saúde mental. Um desses documentos produzidos pela ONU é o PowerPoint que explica o conteúdo da CDPD (Secretariado da ONU para a CDPD: www.un.org/disabilities).

A afirmação existente no Artigo 1 – que, em outro documento, a ONU faz questão de frisar que não se trata de uma definição (UNITED NATIONS, 2007) – merece ser analisada neste artigo por dois motivos: [1] Porque ela ficou sujeita a interpretações as mais variadas nos meios especializados, o que determina que façamos releituras; e [2], porque ela contém falta de esclarecimento, erro de terminologia e contradição na conceituação.

III – INTERPRETAÇÕES

São conhecidas, formal ou informalmente, as seguintes interpretações em relação à afirmação contida no Artigo 1:

[1] “Esta é uma definição do termo ‘pessoas com deficiência’”.

[2] “Os impedimentos de natureza mental e os de natureza intelectual são a mesma coisa”.

[3] “Já não se diz ‘mental’, agora é ‘intelectual’”.

[4] “Na tradução brasileira, consta que ‘Pessoas com deficiência são aquelas que têm…’, mas o texto original em inglês diz: ‘Persons with disabilities include those who have…’ (ou seja, ‘Pessoas com deficiência incluem aquelas que têm…’)”.

IV – RELEITURAS

Analisando as interpretações do item III, consideremos as seguintes releituras:

[1] Não é correta a interpretação 1.

Esta é uma explicação e não uma definição do termo “pessoas com deficiência”. A Convenção da ONU não inclui uma definição de “deficiência” ou de “pessoas com deficiência” no sentido exato, preferindo oferecer alguma orientação sobre o conceito “deficiência” e a sua relevância para o documento (UNITED NATIONS, 2007). Em ambos os termos, a condição de deficiência é conectada intimamente à condição de barreiras da sociedade, podendo estas ser físicas (por exemplo, arquitetônicas), naturais (por exemplo, ecossistêmicas) ou atitudinais (por exemplo, na cultura, na legislação, em políticas públicas). Portanto, não mais a incapacidade (dificuldade ou impossibilidade) como algo derivado da deficiência que a pessoa tenha e sim como imposição do ambiente sobre a pessoa com deficiência.

[2] Não é correta a interpretação 2.

Pois estes são impedimentos de duas naturezas (mental e intelectual); portanto, diferentes entre si: uma não é sinônima da outra.

[3] É correta a interpretação 3.

Pois o termo “deficiência intelectual” substituiu o antigo “deficiência mental”, a partir de 1995.

[4] É polêmica a interpretação 4.

O texto original diz: include those who have, que ao pé da letra significaria “incluem aquelas que têm”. Mas, em consequência, alguns especialistas interpretam, equivocadamente, que o conceito “pessoas com deficiência” esteja incluindo – além das pessoas com deficiência explicadas no Artigo 1 – outras pessoas, portanto, pessoas sem deficiência.

Releitura 4.1: Esse equívoco contradiz todo o conteúdo da CDPD que, já no seu nome, diz tratar-se dos direitos das pessoas com deficiência.

Releitura 4.2: Os documentos da ONU são geralmente redigidos nos seis idiomas oficiais que ela adotou: inglês, francês, espanhol, russo, árabe e chinês. Tomando os três primeiros, que são os idiomas com os quais os brasileiros estão mais familiarizados, constatamos que, além do texto em inglês, a tradução para o espanhol também diz (grifos meus): “Las personas con discapacidad incluyen a aquellas que tengan (As pessoas com deficiência incluem aquelas que tenham). Mas, a tradução para o francês se aproxima da que foi feita no Brasil: Par personnes handicapées on entend des personnes qui présentent (Por pessoas com deficiência se entende pessoas que apresentam).

Releitura 4.3: A explicação inserida no Artigo 1 é includente, ou seja, está em conformidade com a letra “i” do Preâmbulo, que diz: “Reconhecendo ainda a diversidade das pessoas com deficiência (grifos meus).

Releitura 4.4: Concluindo, não há diferença conceitual entre as duas traduções (“são aquelas que têm” e “incluem aquelas que têm”), pois ambas estão delimitadas pelo nome da Convenção e pela letra “e” do seu Preâmbulo, que diz: “Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução” (grifos meus), o que pressupõe a noção de relatividade na explicação do termo “pessoas com deficiência”. Para evitar equívocos na tradução brasileira, preferiu-se a expressão oficial: “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos”.

A Parte 2 estará na edição 128.


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